Artigos de Liturgia, n. 6; Agosto de 2016
Seminarista Rafael Spagiari Giron
Assessor da Pastoral Litúrgica Diocesana
Queridos irmãos e irmãs, filhos amados de Deus!
Após percorrermos um longo caminho de cinco artigos, por meio dos quais pudemos compreender um pouco mais sobre a Celebração Eucarística de que participamos, seja diariamente ou semanalmente, hoje começaremos a nos debruçar sobre o sentido da ação litúrgica e do como se dá a sua relação com o ser humano.
De início é bom deixar clara a significação da palavra “Liturgia”: ela é de origem grega (leitourgia, sendo o verbo: leitourgeth), formada pela junção de Laós, Leós = POVO + érgon = SERVIÇO, AÇÃO, TRABALHO. Deste modo, podemos dizer que “liturgia” é uma ação em favor do povo. No que se refere ao sentido religioso, a liturgia passou a ser compreendida, através da tradução da bíblia de língua hebraica para a grega, como o serviço realizado no Templo de Jerusalém; daí, a palavra veio a ter o significado de função sacerdotal e de serviço ritualístico do templo. No entanto, não faz muito tempo que o termo “Liturgia” vem sendo usado na Igreja. O adjetivo liturgicus e o substantivo liturgia foram introduzidos, sem dúvida, pela primeira vez sob sua forma latina, em 1588 por Georges Cassandre. Rapidamente tais termos ganharam direito de cidadania na erudição eclesiástica. Foi somente no século XVIII que os termos recebiam seu sentido atual, designando o conjunto dos atos do culto da Igreja.
Se o termo “Liturgia” nos remete ao serviço do povo, então todos são chamados a ajudar nesse exercício que traz como consequência o cultivo da fé e a prática da caridade. Deste modo, o crescimento da vida espiritual não se limita à participação em determinada ação cultual (missa, ou celebrações de outros sacramentos), mas vai além, chega até a maneira de se viver com Deus, consigo mesmo e com os outros.
A “função sacerdotal” que a palavra “liturgia” recorda-nos já pode ser visualizada no Antigo Testamento: o sacerdote é aquele que serve de intermediário entre Deus e o povo, oferecendo os sacrifícios a Deus em favor de todo o povo. Com Jesus, seu sacrifício torna-se diferente dos sacrifícios antigos (de animais), uma vez que, agora Ele foi ao mesmo tempo o sacerdote e a vítima, pois ofereceu-se a si mesmo ao invés das vítimas. Por isso, dizemos que Jesus é o sacerdote por excelência, o único sacerdote verdadeiro, o único capaz de oferecer a Deus um sacrifício eficaz. Na Celebração Eucarística, o próprio Jesus é o sacerdote que oferece esse sacrifício, o mesmo único e eterno sacrifício da cruz que ali se atualiza, mas o padre também é chamado sacerdote porque participa desse sacrifício, agindo em nome d’Ele e como seu representante. Ele é sacerdote por Cristo, com Cristo e em Cristo, e não por si mesmo. Ou seja, ele não oferece um sacrifício de si mesmo a Deus, oferece o próprio sacrifício de Cristo.
Embora o presbítero (padre) também seja convidado a oferecer-se a si mesmo, unindo-se ao sacrifício de Cristo, ele é sacerdote, em primeiro lugar, pela ação sacrifical de Jesus Cristo (sua entrega na Cruz) para somente depois, pela Graça de Deus, ser sacerdote no oferecimento de sua vida como serviço aos irmãos. Por isso, o padre não é sacerdote porque celebra a eucaristia; mas o contrário, somente celebra a eucaristia porque é capaz de ser sacerdote a partir de Cristo.
De igual forma, o povo de Deus também é sacerdote na medida em que todos são igualmente chamados a oferecer-se a si mesmos a Deus juntamente com Cristo, unindo-se ao sacrifício de Cristo apresentado e atualizado pelo presbítero na Celebração Eucarística. Por isso, todos os que são batizados formam, na Igreja, o Povo Sacerdotal (“Eu serei o vosso Deus e vós sereis o meu povo” (cf. Ex 19, 3-6)) que, por sua vez, exerce cada qual a seu modo, o ministério que lhe é próprio.
Sendo assim, o ministério, enquanto doação sacerdotal, na constituição e formação da Igreja, pode ser compreendido de dois modos distintos: o ministério ordenado (bispos, presbíteros e diáconos) que são ministros que celebram o sacrifício memorial do Senhor e se doam em favor do Reino de Deus; e o ministério não-ordenado (religiosos e religiosas, leigos e leigas que desempenham diversas funções em colaboração com os ministros ordenados perante toda a comunidade) que unem seu serviço ao sacrifício de Cristo.
Essa liturgia que, segundo o Concílio Vaticano II é, por excelência, o exercício do sacerdócio de Jesus Cristo, o servo do Pai, utiliza sinais sensíveis para que visualizemos a ação de Deus em nós (nossa santificação). Esses sinais estão presentes na vida do Povo de Deus desde o Antigo Testamento, quando o povo de Israel pede a Deus, por intermédio de Moisés, sinais sensíveis da Aliança que Deus tinha firmado com todos eles (cf. Ex 4).
Para que a Liturgia possa ser algo verdadeiro e transformador na vida das pessoas, é necessário partirmos de um princípio básico que nos apresenta a Liturgia como formada por três pontos fundamentais: a experiência de fé, a visualização dos símbolos e a execução dos gestos. Vejamos cada um deles:
Experiência de Fé: o ser humano é capaz de promover e guardar experiências em sua mente. A soma dessas experiências vai, ao logo do tempo, gerando a maturidade e a melhor compreensão sobre os fatos. A fé também é assim: nossas primeiras experiências em relação à fé, como criança (ou adulto), vão-se transformando na crença e na certeza da presença de Deus para além dos sinais e gestos que visualizamos. A comunidade de fé experimenta o Senhor Ressuscitado. Portanto, a experiência de fé é algo que vem antes mesmo dos sinais e gestos, ela é algo natural ao ser humano e precisa ser compreendida e levada ao crescimento para que haja uma fé madura e verdadeira.
Símbolos: a liturgia cristã apresenta-se como um conjunto de sinais e símbolos (como por exemplo: a água, o óleo, a vela, a cruz, o círio pascal etc). Essa palavra “símbolo” vem do verbo grego symbállo que nos remete a um fragmento que exigia ser completado por outra parte para formar uma realidade completa e funcional. Ora, o símbolo por si só não tem sentido algum; nossa experiência de fé vem completá-lo para dar-lhe pleno sentido dentro da liturgia.
Gestos: a execução dos gestos se dá pela expressão do corpo que, por sua vez, nos leva a uma realidade além daquela do movimento realizado (por exemplo: ao estender a mão, não o faço por nada, mas para pegar ou entregar algo, ou cumprimentar ou ajudar, ou seja: o gesto não vale por si mesmo, mas por aquilo que ele significa). Na liturgia precisa ser assimilada a importância dos gestos e a interiorização de cada um deles para a vivência litúrgica. Caso contrário, o Rito passa a ser algo somente mecânico e não vivencial e transformador das realidades internas de cada ser humano.
A experiência de fé, ligada à visualização dos símbolos e à execução dos gestos, leva-nos aos Ritos Litúrgicos. O Rito, em seu sentido originário, é compreendido como a “repetição” de algo. Porém, na fé cristã, o Rito ganha um sentido todo especial: ele é a expressão da fé professada. Além disso, ele é capaz de fazer memória do grande revelador da fé (Jesus); uma memória não como lembrança, mas como concretização no hoje, em cada ato celebrativo, do serviço e da doação de Jesus (é Jesus realizando a LITURGIA-SERVIÇO-ENTREGA em cada ato celebrativo).
No próximo artigo veremos, mais detalhadamente, quais são os símbolos e gestos mais vivenciados na liturgia. Vale sempre recordar que, embora a liturgia aconteça em sua ação plena (nas celebrações) dentro das igrejas, ela é também vivenciada por cada um de nós no dia a dia, através das ações de fé (oferecimento de si mesmo a Deus) e das ações de caridade (oferecimento de si mesmo ao outro). Como “tarefa” de casa deixo-lhes o pedido para que percebam a presença dos símbolos e gestos nas celebrações de que participarem; e não se esqueçam de ligar cada um deles à experiência de fé que cada um possui, sempre à luz do Senhor Jesus que sofreu, morreu e ressuscitou. Boa experiência de fé!
Para ler o artigo n. 5 clique aqui: CELEBRAÇÃO EUCARÍSTICA – RITOS FINAIS